25 novembro, 2006

Política e feiras segundo Coutinho

Pelo gozo que me deu a lê-la, senti necessidade de aqui colocar a cronica de João Perreira Coutinho no Expresso de hoje. Não é genial, mas deleitável...
No fim têm o meu comentário.
Beijos roubados
Confesso: certa vez, e por motivos meramente sociológicos, fui assistir a uma campanha eleitoral. Cenário: uma feira. Actores: os feirantes. Herói (ou vilão): o político avulso. Gostei. A coisa decorre com um profissionalismo higiénico (digamos assim) que as partes cumprem com rigor académico. O político penetra no recinto. E o recinto penetra no político, sob a forma de abraços, gritos, beijos, saliva e, de vez em quando, uma língua a rabiar lá pelo meio. Nunca vi uma dentadura postiça cravada na lapela do tribuno. Mas quem sou eu? Abismado a um canto, limitava-me a contemplar tudo com uma daquelas máscaras cirúrgicas que um familiar amigo, preocupado com a minha expedição, conseguira trazer do bloco. Abençoado seja. E abençoados sejam: só numa campanha eleitoral é possível presenciar um político amassado e lambuzado pela turba gulosa, mantendo no rosto um sorriso sacrificial e penitente. E só numa campanha eleitoral a turba tem a oportunidade única de ajustar contas com o político que a visita por interesse. Talvez exista entre o povo quem beije por amor à causa. Mas a maioria beija por desprezo à causa, o que sem dúvidas contribui para um certo equilíbrio do nosso sistema democrático.
Tudo isso está em risco. Só esta semana, a estimável Federação Portuguesa das Associações de Feirantes resolveu avisar que a ingratidão dos políticos não será premiada com os carinhos costumeiros. Se os políticos não estão interessados em responder às necessidades do sector, modernizando as tendas com tecnologia e pataco, então haverá greve ao beijo e, pior, os políticos serão impedidos de entrar nas feiras em campanha eleitoral. E Fernando Assunção, presidente do organismo, acrescenta com gélida ironia: “Eles que vão fazer campanha para os hipermercados!”
Eu não sei se o país irá sobreviver a tanto: um político, abandonado e só, procurando alguém para beijar entre os iogurtes e os congelados. E os consumidores incautos, sob a luz artificial do espaço, fugindo apressadamente da boca aberta de um qualquer tarado. Evitemos este desastre. Porque, ontem, a epidemia estava nas feiras. Mas, amanhã, pode estar em qualquer lado.
Nota minha: todo o populismo é hipócrita. E a hipocrisia sensacionalista é a lassidão da política. Ao "povo" importa o "contacto" com o "real". A percepção da "proximidade", subentendida em "compreensão". Os feirantes são a imagem da estulta conformação da "vida" com a demagogia. A sua reivindicação é tanto legítima quanto sensata. É dizer: não nos tomem por parvos. Tão só. Podemos pensar que a política é uma feira. Uma feira onde quem convence é quem demove as massas a lisonjear o seu produto. A arte da retórica é convencionada para a apreensão convicta do bom, do belo e do justo. Sem compartimentação dos elementos que a fundamentam. E se o homem é um animal político, os vícios da retórica são as pontes que nos incorrem na aceitação da vida. A vida, mais que um filme, é uma feira. Sem dúvida.

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