Vai votar “assim não” ou “sim, mas”?
Não. Não se vai aqui explanar argumentos acerca do aborto para defender uma linha de voto. Pelo menos directamente. Para tanto, o debate público a que assistimos está a ser exaustivo (o que poderá operar como causa de abstenção), a modo que a sua análise se apresenta não raras vezes desfocada e exacerbada.
Vamos, portanto, tentar objectividade crítica, e, de antemão, assentar o terreno acerca do que será, no plano dos factos, este concreto referendo. Começamos pela sua natureza: o referendo político vínculativo a nível nacional, sendo um voto, é amíude um instrumento de democracia directa. Estruturalmente, dir-se-ia semelhante a uma autorização legislativa de elaboração de normas jurídicas. Mas não é assim, designadamente por uma razão que ressalta de imediato: a muito maior liberdade concedida ao legislador. Isto decorre de o referendo versar sobre uma questão em concreto à qual um sim ou não ditarão o sentido da ulterior alteração legislativa. Mas não há uma densificação suficiente desse sentido, antes uma mera pré-fixação da direcção a lhe imprimir.
Estas considerações jurídicas abarcam uma íncidível consequência no domínio da refutabilidade dos argumentos usados e nas suas relações: nós estamos a dizer “sim” ou “não”, apenas indirectamente quer à questão em abstracto do aborto, quer à sua mera despenalização – e directamente a uma determinada lei, a lei que o PS aprovará caso ganhe o “sim”!
E o que faz essa lei? A efectiva liberalização da prática da IVG até às dez semanas. Penalizando a sua ocorrência após este prazo. Tendo na franja o brocado romano de que “nunca poderá haver uma pena sem crime, mas podem existir crimes sem pena” (e, portanto, pode haver despenalização sem efectiva liberalização) enfrentamos um quase-paradoxo de argumentos. Quer do sim, quer do não. Designadamente: quem diz que nenhuma mulher pode ser presa pela sua prática, acenta o seu raciocínio num plano intemporal – e assim em última análise não concorda com esta lei. E quem defende o valor vida em termos absolutos, diz não quer à lei por aprovar quer à lei em vigor.
Doutro prisma: sendo o conflito de valores e príncipios ético-jurídicos em presença complexo, certas justificações do “não” serão muito idênticas a determinados argumentos do “sim” e vice-versa. Porque agora já entramos na natureza do aborto enquanto fenómeno social ou ao “amago da questão”, se preferirem. Desde logo: é o assasínio de um ser humano – logo, indubitavelmente, reprovável. Por outro lado, o seu contexto tende a mitigar essa censurabilidade. Não por um juízo de “liberdade de opção”, mas atendendo à ideia de que quem o pratica não o faz de ânimo leve, nem como meio contraceptivo em sentido próprio. Fá-lo em virtude de uma anterior negligência que lhe vale, no mínimo, como auto-reprovação moral e social. Esta auto-reprovação será, creio (e quero acreditar que sim!), dupla, em caso de efectiva prática da IVG. A tutela da vida uterina reclama ainda imputar crime?
Fica a questão, mas vinque-se-lhe o natureza: tem na sua sombra uma determinada lei. Há imensa gente que irá votar sim porque não quer criminalizar as mulheres, logo acredita estar unicamente a responder de forma objectiva à pergunta do boletim de voto, o que, não sendo mentira, não é interamente verdade, porque não é só isso. As objecções relevantes advém não só da matéria dos prazos para abortar “ legalmente”, como do seu processo.
Mas repare-se ainda uma situação diferente: um voto “não” que, aceitando a despenalização, (e já não com argumento circunscrito à força peculiar do valor vida) fundamenta-se na possível liberalização de algo que, em última análise, será substancialmente um método de contracepção inaceitável. O que há de crítica possível aqui é que se ignora a eminente virtualidade história de um fenómeno que, clandestina ou legalmente, com mais ou menos condições, sempre existiu – e há clinicas privadas para quem tem bolsos. Logo os Estado quer “regular”. A bem ou a mal logo se verá. A contrário, o controlo da sua prática passaria então mais pela objecção de consciência, promoção do planeamento familiar e educação sexual (primacialmente de âmbito famíliar), e políticas sociais no geral, do que pela (des)penalização. Conclusão: a questão em concreto estará sempre enviesada se recondizível a um binómino sim/não; e, como tal, nestes moldes, inconclusiva.
Vamos, portanto, tentar objectividade crítica, e, de antemão, assentar o terreno acerca do que será, no plano dos factos, este concreto referendo. Começamos pela sua natureza: o referendo político vínculativo a nível nacional, sendo um voto, é amíude um instrumento de democracia directa. Estruturalmente, dir-se-ia semelhante a uma autorização legislativa de elaboração de normas jurídicas. Mas não é assim, designadamente por uma razão que ressalta de imediato: a muito maior liberdade concedida ao legislador. Isto decorre de o referendo versar sobre uma questão em concreto à qual um sim ou não ditarão o sentido da ulterior alteração legislativa. Mas não há uma densificação suficiente desse sentido, antes uma mera pré-fixação da direcção a lhe imprimir.
Estas considerações jurídicas abarcam uma íncidível consequência no domínio da refutabilidade dos argumentos usados e nas suas relações: nós estamos a dizer “sim” ou “não”, apenas indirectamente quer à questão em abstracto do aborto, quer à sua mera despenalização – e directamente a uma determinada lei, a lei que o PS aprovará caso ganhe o “sim”!
E o que faz essa lei? A efectiva liberalização da prática da IVG até às dez semanas. Penalizando a sua ocorrência após este prazo. Tendo na franja o brocado romano de que “nunca poderá haver uma pena sem crime, mas podem existir crimes sem pena” (e, portanto, pode haver despenalização sem efectiva liberalização) enfrentamos um quase-paradoxo de argumentos. Quer do sim, quer do não. Designadamente: quem diz que nenhuma mulher pode ser presa pela sua prática, acenta o seu raciocínio num plano intemporal – e assim em última análise não concorda com esta lei. E quem defende o valor vida em termos absolutos, diz não quer à lei por aprovar quer à lei em vigor.
Doutro prisma: sendo o conflito de valores e príncipios ético-jurídicos em presença complexo, certas justificações do “não” serão muito idênticas a determinados argumentos do “sim” e vice-versa. Porque agora já entramos na natureza do aborto enquanto fenómeno social ou ao “amago da questão”, se preferirem. Desde logo: é o assasínio de um ser humano – logo, indubitavelmente, reprovável. Por outro lado, o seu contexto tende a mitigar essa censurabilidade. Não por um juízo de “liberdade de opção”, mas atendendo à ideia de que quem o pratica não o faz de ânimo leve, nem como meio contraceptivo em sentido próprio. Fá-lo em virtude de uma anterior negligência que lhe vale, no mínimo, como auto-reprovação moral e social. Esta auto-reprovação será, creio (e quero acreditar que sim!), dupla, em caso de efectiva prática da IVG. A tutela da vida uterina reclama ainda imputar crime?
Fica a questão, mas vinque-se-lhe o natureza: tem na sua sombra uma determinada lei. Há imensa gente que irá votar sim porque não quer criminalizar as mulheres, logo acredita estar unicamente a responder de forma objectiva à pergunta do boletim de voto, o que, não sendo mentira, não é interamente verdade, porque não é só isso. As objecções relevantes advém não só da matéria dos prazos para abortar “ legalmente”, como do seu processo.
Mas repare-se ainda uma situação diferente: um voto “não” que, aceitando a despenalização, (e já não com argumento circunscrito à força peculiar do valor vida) fundamenta-se na possível liberalização de algo que, em última análise, será substancialmente um método de contracepção inaceitável. O que há de crítica possível aqui é que se ignora a eminente virtualidade história de um fenómeno que, clandestina ou legalmente, com mais ou menos condições, sempre existiu – e há clinicas privadas para quem tem bolsos. Logo os Estado quer “regular”. A bem ou a mal logo se verá. A contrário, o controlo da sua prática passaria então mais pela objecção de consciência, promoção do planeamento familiar e educação sexual (primacialmente de âmbito famíliar), e políticas sociais no geral, do que pela (des)penalização. Conclusão: a questão em concreto estará sempre enviesada se recondizível a um binómino sim/não; e, como tal, nestes moldes, inconclusiva.
Vai votar assim não ou sim mas?
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